quarta-feira, 29 de junho de 2011

Foucault e a Revolução Iraniana

Ne permets pas au chagrin de t’éteindre dans ses bras / Ni que les tentations de ce monde t’embrassent / Va, bois nuit et jour le sorbet de l’amour / Avant que, d’ordre de Dieu, ta bouche soit fermée par la mort

Rûmi, Rubâi’yât, X

A

s circunstâncias em que se deu o interesse profundo de Michel Foucault pela revolução iraniana deveriam, hoje em dia, ser bem conhecidas. Mesmo que poucos dos textos estejam de fato traduzidos, o leitor brasileiro tem acesso relativamente fácil desde que os artigos escritos por Foucault sobre o Irã entre setembro de 1978 e maio de 1979, cobrindo vários itens entre 241 e 274, foram reunidos no terceiro volume da primeira edição dos Dits et écrits. A edição francesa reuniu pela primeira vez todas as reportagens, os artigos e as entrevistas, com as versões francesas originais dos textos redigidos para o cotidiano italiano, Corriera della sera. Foi como correspondente desse jornal que Foucault visitou o Irã duas vezes durante os acontecimentos que levaram à revolução islâmica: em setembro, logo depois do massacre da chamada “sexta-feira negra”, em que entre 2.000 e 4.000 pessoas foram mortas pelas forças de segurança do Mohammed Reza, o Xá Pahlavi; e novamente em outubro, entrevistando brevemente o Aiatolá Khomeini no seu exílio perto de Paris, em Neauphles-le-Château 2.

Devido a este interesse singular pelos acontecimentos, Foucault tem se tornado, desde então, alvo de críticas diversas, e não desprovidas de violência. E quando não são violentas, as críticas são cuidadosas quando mostram o “erro” que cometeu.

Pretendo comentar três aspectos das críticas contra Foucault. Em uma primeira instância, trata-se de determinar qual o “erro” exato de Foucault, e como podemos determinar um erro de avaliação na história, sem, entretanto, entrar num determinismo histórico quando esse tem a ver com termos ambíguos e desequilibrados de avaliação. Depois, exporemos a decisão equivocada tomada por dois pesquisadores norte-americanos, Janet Arafy e Kevin Anderson, por criticarem Foucault sobre esse assunto antes da publicação da tradução dos textos - à medida que foram os mesmos críticos que disponibilizaram as traduções dos textos somente após as críticas, traduções essas que foram teoricamente um projeto de primeira importância. Por conseguinte, quero ampliar a pretensão deles de que Foucault estava “fascinado” com a morte, entendida de uma maneira niilista, a não ser por um gosto de idolatria, diante do sacrifício coletivo sofrido pelo povo iraniano durante a luta para derrubar o Xá. Isso, segundo os detratores de Foucault, lhe deu uma perspetiva “otimista” a favor do destino da revolução iraniana, como um islamista militante, suspendendo ao mesmo tempo as críticas contra os crimes do regime do Aiatolá, cometidos em particular contra as mulheres resistentes à expansão da sharia, a lei sagrada islâmica.

I

Após os ataques do 11 de setembro de 2001, várias foram as tentativas para marcar o entusiasmo de Foucault com respeito à revolução iraniana como um “erro”. Erro típico de intelectual, ou de intelectual de “esquerda”; erro de europeu crítico da sua tradição, especialmente do iluminismo; erro de homem diante da consciência feminina, das reivindicações feministas ou, pelo menos, com relação ao conceito de gênero. É assim que se cristalizou a leitura desse “dossiê” no mundo anglo-americano após sua consolidação na França. Outro exemplo: Frank Halliday, do London School of Economics, numa homenagem ao grande orientalista Maxime Rodinson, o mesmo Rodinson que formulou uma análise diferente de Foucault sobre o Irã em 1978, e até o criticou, despreza Foucault. Segundo Halliday (2005), Foucault “não sabia nada sobre o Irã e fez-se ridículo (made a fool of himself)”. (Que seja dito, que Afary e Anderson indicam as análises de Rodinson, publicadas em dezembro de 1978 no Le Monde, como aquelas que, sim, entenderam as repercussões dos acontecimentos, ao contrário de Foucault.)

Alías, essa avaliação dos conhecimentos que Foucault teria tido ou não sobre o Irã não é consenso entre seus críticos. Seu conhecimento da história do Irã e do xiismo e seu encontro pessoal com os atores anônimos e principais da revolução, contribuem para refutar a pretensão de ignorância. Na verdade esse desprezo contra Foucault lembra um outro processo contra ele de mulheres francesas que reagiram à manifestação em Teerã no dia 8 de março de mulheres se opondo à obrigação de usar o hejab e contra toda forma de ditadura. A manifestação teve eco na França, Foucault foi chamado a retratar a descrição positiva que deu do andamento da revolução. Diante do julgamento, ele publicou uma declaração irônica, cheia de aversão contra métodos que evocassem o confessionário que fazia parte do procedimento dos partidos comunistas stalinianos contra as divergências ideológicas.

Alguns meses antes, em novembro de 1978 na revista Le Nouvel Observateur, num contra-ataque ainda mais determinado, Foucault tomou posição contra uma outra mulher, uma leitora iraniana usando o pseudônimo “Atoussa H.”. Ela lamentou a aceitação de Foucault do islamismo militante, conclusão de seu diagnóstico do surgimento no Irã de uma “espiritualidade política”, e do desejo do povo de um “governo islâmico”. Sobre o assunto, Foucault publicou em outubro de 1978, na sua primeira intervenção sobre o assunto em francês, o artigo “A quoi rêvent les iraniens?”, cujo título inicial era, “O retorno do profeta”: “Me sinto embaraçado ao falar do governo islâmico como ‘ideia’ ou até mesmo como ‘ideal’. Mas como ‘vontade política’, isso me impressionou. Me impressionou no seu esforço para politizar, em resposta a problemas atuais, as estruturas indissociávelmente sociais e religiosas; me impressionou na sua tentativa para abrir na política uma dimensão espiritual3."

Nesta única reportagem feita no Irã e que foi publicada na França, no Le Nouvel Observateur, entre 16-22 de outubro de 1978, Foucault apresentou o conceito de “espiritualidade política”. Sua recepção provocou uma ambivalência que continua a determinar o julgamento feito contra ele4. Contra as conclusões de Atoussa H., contra o que ele percebeu ser uma condenação dos revolucionários como meros fanáticos, Foucault sustentou que “o problema do Islã como força política é um problema essencial para nossa época e para os anos que virão. A primeira condição para abordá-lo, com o mínimo de inteligência, é não começar pelo ódio5”. O “erro” então se situaria entre o conselho de Foucault de evitar julgamentos fáceis e rápidos contra o êxito islâmico da revolução, e o que o acontecimento da revolução significa em termos históricos e políticos, e o fato de que não tomou posição diante das centenas de mulheres iranianas que foram torturadas, mortas ou exiladas por não se submeterem à lei islâmica em sua interpretação fundamentalista.

Referente ao projeto específico de Foucault, é preciso ressaltar o caráter expressivamente diferente dos artigos que publicou em italiano entre 28 de setembro e 22 de outubro, e em novembro de 1978, e depois em fevereiro de 1979, daqueles que decidiu publicar em francês a partir de 16 de outubro de 1978, a maioria desses, na verdade, em forma de entrevista. Os ensaios do Corriere della sera são afrescos tolstoianos, mergulhando o leitor num cataclismo, uma percepção do apocalipse político, da retroversão da modernidade ocidental, numa fusão de religião com a política militante, mas onde manifesta-se a revolução como fato histórico - percepção de um ocidental diante dos acontecimentos. Ora, quando pensamos no argumento de José Casanova (2001), segundo o qual o surgimento do fundamentalismo teocrático encontra uma data definitiva no final dos anos 1970, de maneira tanto transnacional quanto transcultural, tanto no Irã quanto nos EUA na eleição de Ronald Reagen à presidência, a importância da revolução iraniana torna-se uma evidência de primeira ordem.

Em última análise, e isso comprovado por Arafy e Anderson, a concretização do projeto de Foucault como evidência de um erro será devido particularmente a uma entrevista dada por Foucault antes da absolutização do poder tomado pelo Aiatolá Khomeini, mas só publicada algumas semanas depois disso. A entrevista “Iran: L’esprit d’un monde sans esprit” apareceu num livro publicado pelos amigos de Foucault, Claire Brière e Pierre Blanchet, Iran: la Révolution au nom de Dieu (reeditada pelas Éditions du Seuil em 1997). O livro apareceu nas livrarias depois da manifestação das mulheres no mês seguinte, e se tornou logo um best-seller. O “erro” de Foucault foi formatado por esse prisma, como para lembrar que, na época das narrativas não-lineares, a verdade de suas idéias depende da maneira que o espectador/leitor compõe as peças da sua história na história. O que quer dizer também que aquela construção específica acerca de Foucault se mostra como o ponto de partida que devemos emprestar para filtrar o que foi seu projeto inicial sem logo o classificar como “errado”.

O projeto de Foucault se baseia numa “reportagem de idéias”. No Corriera della sera, Foucault explica que “tem que assistir ao nascimento das idéias e à explosão da força delas: e isso não nos livros que as enunciam, mas sim dentro dos acontecimentos nos quais elas manifestam a sua força, nas lutas que se travam pelas idéias, contra ou com elas. Não são as idéias que guiam o mundo. Mas é justamente porque o mundo tem idéias (e porque ele produz muitas delas de maneira contínua) que ele não é guiado de maneira passiva segundo aqueles que o dirijam ou aqueles que pretendam lhe ensinar a pensar uma vez por todas6”. Tal projeto de reportagem de idéias modula a maneira a partir da qual Foucault concebia o trabalho do jornalismo. Numa resenha de L’Ère des ruptures(Grasset, 1979), escrita pelo redator da revista Le Nouvel Observateur, Jean Daniel, Foucault formulou esse projeto sob forma de questões: “Quem somos nós neste momento? Qual é esse momento tão frágil de que não podemos afastar nossa identidade, e que a levará?”, Foucault continua perguntando: “O cuidado [le souci] de falar o que se passa não é habitado pelo desejo de saber como isso pode acontecer, em todos os lugares e sempre; mas sim pelo desejo de adivinhar o que se esconde debaixo dessa palavra precisa, flutante, misteriosa, absolumente simples: ‘hoje’ 7”.

Assim, a tarefa jornalística foi a de “buscar no Irã não as ‘razões profundas’ do movimento, mas a maneira como era vivido; para quem tentava compreender o que se passava na cabeça daqueles homens e daquelas mulheres quando arriscavam suas vidas, uma coisa era surpreendente8”. Foi desse modo que Foucault descobriu um processo coletivo resumindo-o no termo “espiritualidade politíca”, ou seja, “uma história sonhada que era tão religiosa quanto política9”. Pois já em em outubro de 1978, Foucault negou que o clero xiita representava uma força revolucionária – “não embelezemos as coisas...”. A questão a determinar era o tipo de força que convergiu nele, e quais eram os motivos dos iranianos ao lhe atribuírem sua fé tanto espiritual quanto política.

Em 1978, como Didier Eribon descreveu na melhor biografia sobre o filosofo francês, Foucault se sentiu num impasse de má compreensão que começou na recepção daVontade de saber, e nas circunstâncias da divulgação do projeto da História da sexualidade10. Sustenta-se então que o que Foucault recebeu de ensinamentos dos acontecimentos no Irã teria importância sobre a ruptura, o espaço divergente surgido de dentro, e que a mutação afetaria seu trabalho após a publicação do primeira volume daHistória da sexualidade11. Ainda em 1978, Foucault afirmará de maneira explícita a relação entre a sua experiência de testemunhar a revolução iraniana e o caminho que traçou seu curso no Collège de France, com a importância dada ao cuidado de si e ao conceito de ascese: “No limite, toda dificuldade econômica dada, ainda é preciso saber porque há pessoas que se levantam para falar: ‘isso não está dando mais certo.’ Ao se levantarem, os iranianos se disseram – e é talvez isso a alma da insurreição: temos que mudar esta banda de corruptos, temos que mudar o país inteiro (...) Mas especialmente, temos que mudar a nós12”.

Assim, a reportagem da revolução iraniana, com respeito à progressão do pensamento de Foucault, encontra-se num cruzamento análogo com os eventos de maio-junho de 1968. Só que, onde 1968 representa um novo pensamento histórico-político de Foucault abrindo espaço para analisar uma categoria distinta – o poder – e a expressão política declinando num motivo hiper-individualista, segundo as tendências da arte de vanguarda, a revolução iraniana, especialmente em função da virada fundamentalista da política, introduz a questão da religião, da fé, e do desejo coletivo de salvação, ou até mesmo do sacrifício para alcançar o paraíso visto como um problema vinculado à função da ascese no processo de subjetivação.

Foucault tentou ilustrar a enorme e impressionante coragem da população iraniana se revoltanto “a mãos nuas” contra a força do Xá – naquela época tão próximo das forças armadas dos EUA quanto Israel está hoje13. Ao enraizar os eventos na história do xiismo, ele claramente desagradou os donos do poder midiático para quem, tanto quanto em 2001, descrever e explicar reduzem-se a justificar.

Além de criticar a política ocidental, uma tarefa que dificultava o trabalho de Foucault foi lutar em várias frentes ao mesmo tempo para assegurar a possibilidade de falar, de pensar. Ao se distinguir do marxismo, e especialmente dos trotskistas e maoistas, ele continua sendo castigado por esses, mesmo que muitos trotskistas e maoistas tenham se tornado liberais desde então. Ora, nesse prisma, Foucault pode declarar que “a espiritualidade à qual se referiam aqueles que iam morrer não tem comparação com o governo sangrento de um clero fundamentalista14”. E também, que “não se impõe a lei a quem arrisca sua vida diante de um poder15”. Em outras palavras, e como declara Foucault em “É Inútil Revoltar-se?”, a insurreição é uma singularidade histórica que deve se compreender em si.

A revolução é um fato histórico, segundo Foucault. Em “Pour une morale de l’inconfort”, Foucault ressalta a idéia de que a “historia é dominada pela Revolução [...] do terceiro mundo onde ela nunca tinha acontecido, a revolução vem a nós sob forma descarnada da violência pura para perder a evidência surda que a colocava em sobrevôo na história16”. A descrição do que acontece nessas circunstâncias não precisa da orientação dos especialistas céticos da fala, nem tampouco da intervenção falante deles. Isso Foucault já tinha enunciado como sendo a tarefa do inteletual particular. No artigo, “A quoi rêvent les Iraniens?”, de outubro de 1978, exprime-se de maneira seguinte:

“Que voulez-vous?” C’est avec cette seule question que je me suis promené à Téhéran et à Qom dans les jours qui ont suivi immédiatement les émeutes [de septembre]. Je me suis gardé de la poser aux professionnels de la politique; j’ai préféré discuter longuement parfois avec des religieux, des étudiants, des intellectuels intéressés aux problèmes de l’islam ou, encore, avec de ces anciens guérillos qui avaient abandonné la lutte armée en 1976 et avaient décidé de mener leur action sur un tout autre mode, à l’intérieur de la société traditionelle.“Que voulez-vous?” Pendant tout mon séjour en Iran, je n’ai pas entendu une seule fois prononcer le mot “révolution”. Mais quatre fois sur cinq, on m’a répondu: “le gouvernement islamique”.

Alías, observamos que quando Foucault relatou como a idéia de utopia foi associada ao desejo de um governo islâmico, ele estava citando os militantes, mas não tomando a palavra: “´Une utopie´, m’ont dit certains sans nuances péjorative. ´Un idéal´, m’ont dit la plupart17”.

Estes temas, acrescentados pela derivação da revolução como fato histórico a ser analisado qualquer que seja seu enunciado, seu contexto, fazem parte do famoso “entusiasmo” que estaria na base do “erro” de Foucault. Julgar errôneas as conclusões de um projeto de jornalismo descritivo sobre singularidades históricas, projeto esse chamado por Foucault de “reportagem de idéias”, é emitir enuciados ex post facto, referentes a uma série de acontecimentos ainda não presentes, ou seja que se referem a um regime de verdade de uma outra ordem, muitas vezes irredutível uma à outra. Por outro lado, podemos considerar que tais julgamentos se produzem, simplesmente, em função das ambições carreiristas do jornalismo profissional que, em nome do princípio de objetividade, organiza os acontecimentos segundo as normas do senso comum vigente. De todo modo, era isso o que Foucault tentou evitar quando escreveu, “a questão é a de saber quando e como a vontade de todos vai dar lugar à política [...] Admitamos que nós Ocidentais estaríamos mal colocados para dar, sobre este ponto, um conselho aos iranianos18".

O jornalismo de idéias se concentra sobre a descrição de singularidades históricas em andamento. Por isso, a descrição tem que ser o modo de sua intervenção. O que é a verdade se submete a um perspectivismo. Foucault já orientou seu trabalho de historiador segundo normas e critérios semelhantes. “Pratico um tipo de ficção histórica”, afirmou numa discussão na revista norte-americana Campus Report. “De um certo modo, eu sei que o que falo não é verdadeiro. [...] [Mas] tento provocar uma interferência entre nossa realidade e o que sabemos da nossa historia passada19.” No caso do Irã, de uma outra cultura, outra civilização, e de uma outra religião, a tarefa de Foucault se mostrou norteada por um desafio maior: descrever como os acontecimentos de 1978-79 eram e não eram ao mesmo tempo uma “revolução”, e como entender isso na transformação do conceito histórico de “revolução”. Nesse prisma, a “espiritualidade política” se manifesta como a base de uma auto-transformação subjetiva, somente a partir da qual dá para decidir sobre o sentido de um evento revolucionário: sobre o enunciado “algo tem acontecido”. O jornalismo de idéias leva o pensamento mais perto da indecidibilidade deste evento fundador, algo que ainda hoje se chama, de maneira universal, “revolução”.

Contudo, isso demostra uma falha maior aos olhos de seus detratores, a de deixar em silêncio o alto custo pago pelas mulheres iranianas com respeito a seus direitos civis. Em outros termos, os advogados do liberalismo e do intervencionismo militar nos países muçulmanos desenhados como hostis têm, como no caso do Afeganistão em 2001, formulado a lenta condenação do Islã a partir da questão do gênero. A convergência entre 1978-79, 2001 e o julgamento atual de Foucault está longe de ser uma coincidência.

II

Recentemente, a tradução do dossiê ao inglês foi precipida por uma tentativa midiática de criar uma controvérsia. Janet Afary e Kevin Anderson (2004, 2005), dois professores norte-americanos, com Afary sendo de origem iraniana, redigiram um artigo “The Seductions of Islam: Revisiting Foucault and the Iranian Revolution”, para explicar a necessidade de publicar os textos de Foucault sobre a revolução iraniana em inglês. Em referência ao livro de Maxime Rodinson, La Fascination avec l’Islam, no qual ele argumenta que os intelectuais ocidentais muitas vezes demonstraram um lado ingênuo em relação às culturas e políticas do meio-oriente, Afary e Anderson escolherem escrever o artigo no clima pesado, anti-muçulmano, do período após o 11 de setembro de 2001. Ainda mais do que outros, eles chamaram atenção, tanto de maneira direta quanto de maneira referencial, aos biógrafos norte-americanos de Foucault, que, ao contrário de Eribon, também citado, ressaltaram os “erros” de Foucault neste episódio na sua vida. Na França, essa crítica já foi de maneira oportuna exposta por Alain Minc, um dos donos do jornal Le Monde, muito tempo depois dos eventos de 1978-1979 num editorial cujo alvo era na verdade Jean Baudrillard. O editorial, de uma rara violência, e no qual o nome de Foucault aparece, foi publicado no dia seguinde dos ataques contra as torres gêmeas e o pentágono.

Por sua parte, Afary e Anderson procuram entender como Foucault poderia ter sustentado o islamismo. Eles ressaltam a ambivalência da questão do conceito de gênero em Foucault, e dos direitos das mulheres, apesar da reputação de Foucault no mundo anglo-americano de ter sido um dos primeiros teóricos homens a dar bases filosóficas a um pensamento sobre o gênero, no trabalho que fez sobre a sexualidade, e sobre o modo que o poder investe no corpo. A militância de Foucault em favor dos direitos iguais para os homossexuais também contribuiu para sua reputação. Ora, com os escritos sobre a revolução iraniana, Afary e Anderson atestam a existência de uma lacuna sobre a questão das mulheres no pensamento político de Foucault.

Contudo, o artigo e o livro de Afary e Anderson me suscitaram uma interrogação de ordem ética. Foucault é ainda um dos autores-filósofos mais vendidos nos EUA. É tipico nessa situação que um certo setor midiático vise a desacreditar pensadores estrangeiros que ocupem uma posição de alta influência no cotidiano deles, a partir de uma perspetiva sempre ex pos fato sobre decisões e posições tomadas durante acontecimentos históricos no momento em que a progressão política ainda não tinha demonstrado completamente suas repercussões. Penso nos casos de Sartre, Adorno, Marcuse e Arendt, sem falar de Freud num outro contexto. O pensamento sobre a revolução é quase sempre da ordem da simultaneidade. A meu ver, quando uma crítica se formula contra uma revolução de conseqüências histórias importantes a partir do superpoder guardião da ordem internacional, a crítica perde ainda mais a sua neutralidade acadêmica. Assim, perguntamos por que as traduções dos textos de Foucault não foram publicadas de maneira separada por Afary e Anderson, em vez de eles tentarem formar a opinião dos leitores antes das traduções estarem recebidas e absorvidas?

O ponto mais concreto que Afary e Anderson pretendem explorar trata do pensamento de Foucault sobre a morte, com o qual gostaria de me atar. Afary e Robinson escrevem: “Na tradição de Nietzsche e de Bataille, Foucault abraçou o artista que muda os limites da racionalidade. Ele escreveu com muito paixão em defesa das iracionalidades que abriram fronteiras novas. Em 1978, Foucault achou tais poderes transgressivos e mórbidos na figura revolucionária do Aiatolá Khomeini e os milhões que arriscaram a vida ao lhe seguirem no curso da revolução20”. Para sustentar ainda mais essa convicção, os autores dão credibilidade a um biografo já controvertido de Foucault, James Miller. Escrevem que “Miller é o único biógrafo a sugerir que a fascinação de Foucault pela morte jogou um papel no seu entusiasmo para os islamistas iranianos, e na ênfase sobre o martírio de massa21”.

Cabe ressaltar que o problema da morte, o desejo da morte, em Foucault, não se reduz a Nietzsche e a Bataille. Apesar da presença continua de Nietzsche e Bataille na formação e na progressão do pensamento de Foucault, não devemos assumir uma interpretação simples ou sociológica do pensamento dele, nem ter a pretensão, através de uma interpretação morosa desses autores, que de uma influência formadora no domínio das idéias surge, de maneira linear, uma força causal.

Pois além da suposta fascinação cega de Foucault por Nietzsche, o que o autor de Para além do bem e do mal representa como projeto filosofico de transvaloração dos valores se traduz, por Foucault, num cuidado de si como vinculado à Vontade de saber e à tentativa de acolher pontos de resistência que emergem coletivamente em novas expressões de subjetivação. Além do mais, o niilismo, transfigurado na transvaloração dos valores, vai se complicar no último período do pensamento de Foucault com a virada ética acerca do cuidado, da transformação de si, e da ascese. E talvez, mas um talvez altamente especulativo, a complicação acerca da transvaloração dos valores poderia ter decorrido de um Foucault já confrontado, mesmo de modo latente, com a sua própria morte, o que ele poderia já ter sentido em 1978-1979 – período, segundo todos os biógrafos, que corresponde a uma depressão profunda que o levará a passar cada vez mais tempo nos EUA.

Portanto, pode-se encontrar pelo menos três concepções da morte em Foucault. Cada uma o distancia da posição ingênua e acrítica atribuída pelos dois autores para o descrever diante da fúria política dos islamistas xiitas. Longe de uma idolatria, Foucault não parou de multiplicar as interpretações da aceitação da morte, o que em si, refuta a classificação que isso foi feito com um entusiasmo acrítico. Seu retrato da recepção da morte pelos militantes xiitas só acrescenta, como mais uma expressão, ao seu projeto de pesquisa contínuo22.

Esquematizando, o desejo da morte pode ser entendido nas seguintes maneiras:

1) A aceitação paradoxal da entrega passiva do espírito à morte, caraterizada na execução de Sócrates, até a disposição resoluta de uma compreensão autêntica da finitude radical do ser-para-a-morte em Heidegger. Chamamos essa de aceitação anti-cética.

2) A aceitação anti-pânico, a saber a aceitação paralela da morte na afirmação da vida corajosa e heróica, para exaltar na vida o que há de mais fraco ou frágil suprimido pelas manifestações do poder no mundo.

3) E a aceitação anti-fragmentária: a aceitação revolucionária da morte como finalidade possível do agir de maneira ética num reconhecimento de um novo processo de subjetivação em sua extensão universal.

Foucault tem abordado todas essas disposições diante da morte em momentos diversos da sua obra. Ele até abriu ainda mais caminhos no Nascimento da clínica ressaltando o trabalho do anatomista e fisiólogo francês Xavier Bichat (1771-1802), para quem a morte é aquilo diante da qual o conjunto das funções vitais resistem. Foucault é um dos nossos guias para pensar a morte fora do pathos heidegeriano. Numa entrevista dada em outubro de 1978 para a revista italiana Playmen, situada fora dos escritos sobre o Irã, “Conversazione senza complessi con il filosofo che analizza le ‘strutture del potere’”, Foucault diz:

Me perguntei várias vezes se a morte não era preferível a uma não existência, e se não devíamos nos dar a possibilidade para fazer o que queremos de nossa vida, qualquer que seja nosso estado mental. Para mim, a conclusão evidente é que mesmo a pior dor é preferível a uma existência vegetativa, porque o espírito tem realmente a capacidade de criar e de embelezar, mesmo a partir da mais desastrosa existência. Das cinzas surge sempre um fenix....

O entrevistador responde: “Eu lhe acho otimista”. E Foucault replica: “Em teoria, mas a teoria é a pratica da vida [...]23”.

III

A artista plástica, Shirin Neshat nasceu no Irã e mora nos EUA, onde tem desenvolvido uma das obras mais fascinantes na arte contemporânea. Seu trabalho inclui fotografias, focalizando-se mais recentemente em instalações cinematográficas para capturar uma experiência que os modos de ver e de viver ocidentais não conseguem receber sem a julgar como sendo contrária aos seus valores mais fundamentais de liberdade individual e da igualdade entre os sexos. O que nos importa é que Neshat em obras como “Mulheres de Alá”, “Turbulência” e “Rapture”, tal como Foucault nos afrescos escritos para o Corriere della sera, tem se engajado para suspender o juízo diante da revolução islâmica. Assim, Neshat (2003) sustenta que “a responsabilidade da artista é nem validar nem criticar idéias sociais e políticas24”. Ela olha a arte como um modo de construir uma relação com o seu país de nascimento a partir da experiência de um exílio escolhido. Como a carateriza a professora Negar Mottaheded da Duke University, “o trabalho de Neshat adere a uma crença fundamental segunda a qual a transformação vem de onde a pressão fica mais intensa. Transformação, e assim criatividade, é nem sistêmica, nem racional, mas surge de lugares e de corpos sobre os quais a maior pressão está aplicada25”.

Tanto poderia ser dito do pensamento de Foucault. Neshat tem visitado o Irã várias vezes desde 1990 e descrito a normalização, ou o que corresponde ao fim da guerra contra o Iraque e a suspensão da ameaça norte-americana, guerra que deixou perto de meio milhão de mortes nos dois lados. Diante da beleza das suas imagens, ela também recebe críticas por estar estetizando o regime islamista e a vida na República Islâmica, apesar de ter expressado o seu espanto diante das transformações ocorridas no espaço de dez anos no Irã, e ainda mais por ter-se recusado a voltar a morar ali. Ao descrever, não julgar, Neshat, como artista plástica e pensadora, realça o âmbito da subjetivação diante do qual os discursos se separam e o real surge. Mas na perspetiva do gesto autoritário, norteado pelos interesses de classe, de religião e de ideologia, que se mostrou no caso do 11 de setembro, descrever é justificar. Nem Foucault, nem Neshat, temem a exigência na expressão para dividir os discursos para deixar transparecer o real.

Assim, pretendo terminar com esta reflexão, em diagonal às outragens das mídias européias e norte-americanas. A questão ocidental do gênero, mal consegue sustentar de maneira convincente e universal uma posição política, não só no caso do Irã e do fundamentalismo, mas também com o Islã moderado. Como encontramos na França, meninas falando a favor de usar a hejab, dois discursos estão se confrontando acima de um abismo. Eles se apresentam como irredutíveis neste período de histeria ocidental, judeu-cristão, contra a outra “religião do livro”. Que tanto as mulheres quanto os homens vivem sob um domínio restrito de liberdade sexual no Irã, e que as mulheres pagam um custo maior pelas transgressões, isso faz parte da realidade no Irã, a meu ver, mesmo que a inclusão das mulheres na vida pública e nas faculdades esteja sendo encorajada pela sociedade. Mas quando consideramos que o custo de obedecer ao programa de modernização à maneira ocidental promovido pelo Xá, levou à sexta-feira “negra” do 8 de setembro de 1978, quando milhares de pessoas foram mortas pela forças de ordem do mesmo Xá, entre outras repressões cometidas numa escala menor, sobre isso ouvimos muito menos.

A tentativa de reduzir a política a um relativismo de poder e de cinismo é ainda menos convincente. A noção de revolução, por definição, deixa muitas pessoas infelizes, e até mesmo muitas mortes. Ao chamá-la de “fato histórico”, Foucault, me parece, quis meramente indicar o principal, ou seja, que a revolução supera o desejo individual por uma justiça vinculada a sua experiência própria e aos interesses de seus semelhantes. O fato histórico revolucionário pertence à reconstrução do pensamento e da experiência a partir da diferença, do evento, e da catástrofe na sua significação etimológica: uma mudança de sorte para o bem, ou para o mal, um transtorno para além do bem e do mal. A catástrofe fica coextensiva ao domínio do jornalismo das idéias. Não do modo do think-piece, nem do jornalismo “subjetivo”; do estilo do afresco: ainda como uma superfície molhada em que se aplica a tinta, mas cuja cristalização permanece imperturbável logo depois, apesar de a sua superfície dar-se como testemunha do tempo, vulnerável à corrupção provocada pelo ar, pela polução e pelos flashes das tecnologias do tempo futuro, mas salvando-se num princípio de base: suspender o julgamento, o juízo, dar-se ao espectador como evento indiscernível da elaboração do seu conteúdo referencial.

Assim, como vários sustentaram com insistência, após os ataques do 11 de setembro de 2001, descrever e explicar a história em progresso, no caso a história do fundamentalismo islamista, não é justificá-la. É vivê-la. Atores e sujeitos conscientes de nossa passividade mutável, temos, ateus ou religiosos de diversas confissões, que não iniciar nossa passagem à percepção, ao pensamento, pelo ódio.

Fonte:

http://www.unisinos.br/_diversos/revistas/versoereverso/index.php?e=9&s=9&a=78

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